O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço.
O amor comeu meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas.
O amor comeu metros e metros de gravatas.
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus
sapatos, o tamanho de meus chapéus.
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia.
Comeu em meus livros de prosa as citações em verso.
Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa.
Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de
propósito escondido.
Bebeu as lágrimas dos olhos que,
ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde
irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta,
cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O
amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que
riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua
chutando pedras.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu
relógio, os anos que as linhas de minha mão
asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro
grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da
terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha
noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio,
minha dor de cabeça, meu medo da morte.
[João Cabral de Melo Neto]