Jean-Claude Carrière

Numa situação extrema, nosso espírito se debruça sobre si mesmo e acreditamos na realidade de nossos próprios devaneios. Nosso imaginário é tão vasto, e em certas instâncias tão categórico, tão preciso, que chega a suplantar o real, ardiloso e encoberto por máscaras, aspirando, justamente ele, com tudo que tem de nebuloso, à condição de verdade suprema, inalterável, autoritária. Os deuses, ou Deus, personagens em constante transformação de uma história concebida pelos homens, acabam desse modo por destronar seus inventores e nós nos prostramos, em vão, diante de nossos fantasmas.


Felizmente as histórias que contamos para nós mesmos têm a consciência desse desvio, dessa perversão. Se permanecem sempre abertas a outra coisa, como uma janela mal fechada por onde se insinuam, numa noite de verão, uma mistura de perfumes que chega do jardim juntamente com os ecos abafados de uma festa, elas sabem nos trazer de volta para nós mesmos quando é preciso, sabem se mostrar severas e zombeteiras. A cada instante elas chamam nossa atenção para o que têm de traiçoeiro e para a ilusão que são capazes de transmitir.